sábado, 7 de fevereiro de 2009

Fora de Luanda III: Massangano


Semanas depois dos passeios da Cabala e da Muxima, continuámos em frente no entroncamento de Catete, tomando as indicações para o Dondo, onde o Afonso já tinha ido a trabalho. As fotos que ele mostrou deixam antever que esta cidade merece uma visita de várias horas, o que obrigará a madrugar na partida de Luanda, até porque a distância é maior e ainda há troços a ser pavimentados pelos chineses. Pavimentados, mas pouco, com uma camada de alcatrão demasiado sumítica, que pouco depois de aplicada começa a desaparecer. Qualquer semelhança entre uma obra chinesa e uma bugiganga qualquer comprada numa loja deles não é uma mera coincidência. Ainda há quem não tenha percebido que o demasiado barato não pode ser bom.

Mas o destino deste passeio era outro, seguindo a sugestão do Afonso, que tinha encomendado um carro a um menino de Massangano, e que pretendia pagar com um conjunto de lápis de cor e um livro para colorir. Massangano é mais uma povoação nascida nas margens do Kwanza. Não existe placa, pelo que o primeiro ponto de referência para deixar a estrada principal é um par de chaimites abandonadas após o fim da guerra.

Numa curva da estrada secundária, somos brindados com uma varanda sobre o Kwanza, capaz de nos arrancar comentários com muitos pontos de exclamação.



A 50 metros, duas mães esmagavam amendoim à sombra de um embondeiro. Tarefa demorada? Pois, «a pedra é pequena».

Adiante, outro desvio da estrada é assinalado por uma série de acácias que, em Dezembro, se decoram de vermelho para assinalar o Natal.




Chegámos. Vê-se menos gente nas ruas do que na Cabala, ponto de paragem por causa da travessia do Kwanza, e do que na Muxima, capital religiosa. Sente-se o efeito psicológico de estrada sem saída, que acaba no rio e deixa os habitantes da povoação longe da "civilização." Mas a presença de mais elementos herdados do tempo colonial, e o facto de preencherem uma área considerável, leva-nos a crer que esta terra já conheceu outra grandeza.






Encontrar um adulto não é imediato, mas não faltam crianças. As meninas treinavam para o que as espera quando tiverem um marido, o que há-de acontecer poucos anos depois de se tornarem férteis: dentro de um pequeno tacho, o peixe fisgado no Kwanza ganhava a cor do óleo de palma e o calor da fogueira improvisada. Ao lado, noutro tacho, coziam arroz com feijão.



Meninas e meninos esqueceram as brincadeiras quando viram chegar três brancos com máquinas fotográficas. Em poucos minutos perderam a timidez e, quando um deles percebeu que as máquinas permitem ver as fotografias depois de tiradas, ficaram eléctricos, querendo ver como ficavam, «este aqui sou eu». As mais velhas, de 11 e 12 anos, já com a vaidade a despontar, faziam pose e enxotavam (em vão) a concorrência, exigindo ser o centro das atenções.



Fiz-lhes a vontade por uns tempos. Não ficaram saciados, mas acabaram por não ter remédio senão acompanhar-nos no passeio pela povoação. Um dos rapazitos, de 7 anos, deu-me a mão no caminho. Dei por mim a pensar se o rapazito teria falta de uma figura paterna e, à pergunta do Afonso se preferimos a Muxima ou Massangano, naquele momento não consegui responder. Em poucos minutos o sacaninha desfez-me as dúvidas: ainda que timidamente, chamou-me cota e fez aquele gesto universal de roçar o polegar pelos dois primeiros dedos, como que a cravar trocos. Ora, eu lido muito bem com o meu cabelo grisalho precoce, e não foi o adjectivo que me deixou piurso, por isso fiz-me desentendido. Em breve voltou à carga: «cota, dá um dinheiro». Olha-me o pingente, hein! Para que é que ele queria o dinheiro, ele já saberá fazer contas, sequer? Ainda se pedisse uma bola (uma das meninas, à despedida, pediu uma boneca)...

Foi o único, porém, e a Paula trouxe histórias mais bonitas para contar, envolvendo o menino e a menina mais novos do grupo, mais cativados por ela do que pela máquina fotográfica. Ele, que com 4 anos possivelmente nunca tinha visto um branco, passava-lhe a mãozita pelo rosto como a descobrir algo completamente novo:

- Os láábios... o nariiiz... É mulata?
- Não... Sou branca.
- Ah...

Mas com a Mónica (a pequenita de cuecas cor-de-rosa e umbigo inchado que na foto abaixo ignora o fotógrafo e olha admirada para a “madrinha”) houve um amor correspondido à primeira vista.



No passeio a pé pela cidade, agarrou-se à saia da Paula, que lhe deu a mão. Sentada à porta da igreja, encostou a cabecita a ela. E, depois da forasteira ter perguntado o nome de toda a gente, foi a única que quis saber o nome dela:

- Como chama?
- Eu sou a Paula.
- De quê?
- Paula F[...]. E tu, és a Mónica de quê?
- Eu sou a Mónica da Ju'iana.

O diálogo era surpreendente. Uma criança pequena, numa povoação esquecida a dezenas de quilómetros da povoação vizinha, com tamanha noção de identidade e de família?! Este episódio deixou um jovem casal português a bater um bocadito mal durante dois dias e duas noites mal dormidas, durante os quais "sonhámos" em recompensar aquela doçura e aquela sensibilidade com a oportunidade de conhecer o mundo fora de Massangano.. Então e... se a malta fosse lá e “roubasse” aquela menina? Hum? Bora? Vamos lá e trazemo-la connosco, boa? E os pais? Ah, os pais querem lá saber da filha, só querem saber do dote que vão receber por ela.

Sosseguem: sabemos que mesmo que fosse aceite na sociedade Massanganense, seria ilegal no resto do mundo; era apenas um devaneio. Além de ser uma fantasia irrealizável, trazê-la para a “civilização” seria de facto uma recompensa? Ou um castigo? Então e oportunidade perdida de brincar com os pés descalços na rua sem cortar os pés num caco de uma garrafa? E quando crescesse e confrontasse os objectivos estabelecido na fasquia “ocidental” com as metas que as pessoas normais conseguem realmente ultrapassar? Naquela povoação, ela é apenas uma menina que aos 14-15 anos será entregue para casamento, aos 18 provavelmente já terá dois filhos, e cujas contrariedades na vida serão o tamanho da pedra com que esmaga o amendoim. Na Europa, enriquecer-se-ia com conhecimento, desejaria tudo o que os outros desejam (o príncipe encantado, uma carreira, uma casa, os gadgets da moda) e sofreria com tudo o que não conseguisse obter. O que pensarão as crianças africanas que conquistam o coração dos ocidentais, quando são levadas para os países deles e crescem segundo as regras deles? Ficar-lhes-ão gratas, ou com raiva deles por lhes terem roubado um futuro que pode não ter aspirações mas também não terá desilusões?

Ainda não voltámos lá, e não sabemos se alguma vez o faremos. Não queremos correr o risco de ficar a "bater mal" de novo.

Como estará a Mónica? O que será que recebeu neste Natal?

8 comentários:

Anónimo disse...

Tic Tac, tic tac... o relógio biológico continua a trabalhar e a chamar-vos. Tic Tac, tic tac... ;)

RAD disse...

Bem, o relógio biológico vai ter de continuar à espera, que nós somos fieis aos nossos projectos e compromissos... ;)

Afonso Loureiro disse...

As senhoras estavam a esmagar dendém, para fazer óleo de palma.

E as vossas dúvidas acerca das aspirações da menina fazem-me lembrar Fernando Pessoa, que queria ser como a ceifeira, mas sabia que se fosse ceifeira não queria ser ceifeira porque teria mais aspirações que ela.

Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção ! A ciência

Pdavid disse...

Tal como o do Afonso Loureiro, oeste blog vê-se que é de portugueses recém chegados. Massangano: não sabem o que representa na história de
Angola. Por exemplo quem fundou a feitoria de Massangano? Como chegou até lá? Pesquisem porque é muito interessante. PVI: na década de nos fins da década de 60 e princípios da década de 70 todos os meninos com a idade dos que se podem ver nas fotos contavam a história de Massangano a troco de 5 tostões.

E ao forte da Quibala, ainda não foram?

RAD disse...

Caro Pdavid,

Saúdo o seu interesse por História, e lamento não corresponder às suas expectativas de encontrar uma apresentação mais completa da cidade.

Ainda não tivemos a oportunidade de ir até à Quibala.

Cumprimentos.

Pdavid disse...

Aqui fica...

O Forte de Nossa Senhora da Vitória de Massangano, popularmente conhecido como Forte de Massangano ou Fortaleza de Massangano, localiza-se na povoação de Massangano, no município de Cambambe, província de Kwanza-Norte, neste local ocorreu, em 1580, a Batalha de Massangano, entre as forças portuguesas e o rei Ngola Kiluange.

Posteriormente, em 1582, as forças portuguesas, sob o comando do Capitão Paulo Dias de Novais, foram repelidas pelos Ngola, quando tentavam penetrar na região, em busca das lendárias minas de prata.

Esta fortificação foi erguida pelo próprio Novais (Manuel Cerveira Pereira segundo outros autores), às margens do rio Kwanza, em 1583, com a função de defesa do presídio (estabelecimento de colonização militar) que assegurava a ocupação portuguesa na região, alargando-a. Além de marcar a presença militar portuguesa, esse estabelecimento garantia a integridade da rede de tráfico de escravos para o continente americano.

Posteriormente, em 1640, as forças da rainha Nginga atacaram o Forte de Massangano, ocasião em que as suas duas irmãs, Cambu e Fungi, foram aprisionadas, sendo esta última executada. Diante da ocupação de Luanda pelas forças da Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais, em Agosto de 1641, foi em Massangano que as forças portuguesas se recolheram e onde resistiram até à reconquista, por Salvador Correia de Sá e Benevides, em Agosto de 1648.

Em Massangano também esteve detido o implicado na Inconfidência Mineira, José Álvares Maciel, na década de 1790, ali sendo solto para lutar pela própria sobrevivência.

Até meados do século XIX o presídio e a sua guarnição foram governados por um Capitão-mor.
Alguns edifícios e as ruínas de Massanga--no foram classificados como Monumento Nacional pelo Decreto Provincial n° 81, de 28 de Abril de 1923.

Actualmente encontra-se em poder do Estado, afectada ao Ministério da Cultura.

O forte apresenta planta quadrada, sem baluartes nos vértices. Nos seus muros rasgam-se dez canhoneiras. O acesso é possível através de um túnel abobadado a partir do portão de armas, pelo lado voltado para terra. No seu terrapleno erguem-se as edificações de serviço: Casa do Comando e Quartel de Tropa.

Pdavid disse...

E, mais...


Paulo Dias de Novais (c. 1510 – Massangano, 9 de Maio de 1589) foi um fidalgo e explorador português. Era neto do navegador Bartolomeu Dias, e foi escrivão da Fazenda Real.
Integrou uma embaixada de Portugal ao reino de Angola em 1560, juntamente com religiosos da Companhia de Jesus, que tinha como objectivo contactar o lendário rei de Ndongo Ngola Kiluanji. Acabou por ficar detido, sendo libertado em 1565 ou 1566, com o auxílio "de uma princesa filha daquele rei" sob a promessa de ir a Portugal arranjar socorro militar contra a campanha iniciada por Kiloango-Kiacongo, um temido rival de Ngola Kiluanji.
Novais obteve do rei D. Sebastião (1568-1578) uma Carta de Doação (1571), que lhe dava o título de "Governador e Capitão-Mor, conquistador e povoador do Reyno de Sebaste na Conquista da Etiópia ou Guiné Inferior", nome pelo qual a região de Angola era então conhecida. Partiu de Lisboa em 23 de Outubro de 1574 e desembarcou na chamada ilha das Cabras (actual Ilha de Luanda) a 20 de Fevereiro de 1575. Ali já existiam cerca de sete povoados e Novais encontrou sete embarcações fundeadas e cerca de quarenta portugueses estabelecidos, enriquecidos com o comércio negreiro, ali refugiados dos Jagas. Acredita-se que já estivessem ali estabelecidos há alguns anos, uma vez que na ilha também existia uma igreja e um padre.
Estabelecendo-se na ilha de Luanda, Novais recebeu uma embaixada do rei Ngola Kiluanji Kiassamba (29 de Junho de 1576), recebendo a permissão deste para se mudar para terra firme, para o antigo morro de São Paulo, onde fundou a povoação de São Paulo de Loanda.
Pelos termos da Carta de Doação recebida, Novais deveria expandir o território para Norte até às margens do rio Dande (Bengo), para o Sul, e para o interior ao longo do curso do rio Kwanza. Tinha ainda a obrigação de construir uma igreja, fortalezas e de doar sesmarias, para assentamento dos colonos. Partiu em direção às terras do Ndongo, em busca das lendárias minas de prata de Cambambe, avançando pelo vale do Kwanza até à sua confluência com o rio Lucala, onde fundou a vila de Nossa Senhora da Vitória de Massangano, em 1583 (ver Fortaleza de Massangano.
Faleceu em Massangano e lá foi sepultado, defronte da Igreja de Nossa Senhora da Vitória, em túmulo de pedra. As suas cinzas foram mais tarde transladadas para a Igreja dos Jesuítas em Luanda, pelo Governador Bento Banha Cardoso, em 1609.

Anónimo disse...

A todos os interessados fica aqui o link do meu FB onde coloquei algumas fotos mais actualizadas de Massangano tiradas este fim de semana.
http://www.facebook.com/album.php?id=100001546519613&aid=34257