terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Meia pizza salpicada


Lembro-me de, na escola primária, a professora falar nas Quatro Estações. Lembro-me do tempo em a divisão do ano em quatro partes "fixas" fazia sentido: de Março a Junho, a temperatura amena permitia apreciar os campos que se inundavam de flores e passarinhos; de Junho a Setembro, os dias longos, quentes e de céu azul convidavam a umas agradáveis idas à praia; de Setembro a Dezembro, as nuvens baixavam a temperatura e o vento arrancava as folhas às árvores; e de então até à chegada da Primavera, os dias eram curtos e dominados pelo frio e pela chuva ou neve. Hoje, as datas habituais destes fenómenos parecem bastantes menos estanques.

Antes de vir para Angola, disseram-me que aqui havia apenas duas Estações: a quente e húmida, mais ou menos de Setembro a Março, e a "fria" e seca, no resto do ano. Fria, para o termostato do mwangolé, que sente necessidade de ir buscar as malhas ao armário para se proteger dos 17º da brisa nocturna...

Não nos causou surpresa mal termos visto chuva durante os meses da época seca, mas estranhámos quando, de Outubro em diante, o panorama se manteve. Sentíamos a humidade no ar e, principalmente, nos nossos corpos, poucos minutos depois de sairmos do banho; ouvíamos a rádio falar de inundações nalgumas províncias, notávamos mais mosquitos a invadir-nos a casa, mas a chuva tropical teimava em não aparecer na capital. Inocentemente, comentámos na empresa que faziam falta uns aguaceiros valentes para varrer o pó das ruas, mas para os "nossos meninos", chuva é sinónimo de inundações e de trânsito (ainda) mais complicado.

Esta sexta-feira, as nuvens acordaram com cara de quem ia chorar a qualquer momento. Verteram umas lágrimas de curta duração pela manhã e, envergonhadas, abriram caminho ao sol e ao céu azul. Tudo ficou como nos outros dias, portanto.

Mas, à noite, já depois da carruagem da Cinderela se transformar em abóbora, notei algo de estranho no ar. Não se houviam os sons que nos martelam a cabeça quando estamos em casa - os alarmes dos carros, accionados pelos escapes livres das motas e dos quads dos meninos ricos. Já estaria toda a gente na ilha?

O silêncio foi interrompido por um som familiar. As nuvens tinham voltado sorrateiramente e desabaram num pranto. Hipnotizaram-nos por alguns minutos, tais eram as saudades de estar debaixo de telha a ver chover lá fora. Não foi preciso muito tempo para se formar um tapete de água na estrada, que os carros rompiam como se tivessem uma quilha. Também não foi preciso muito para começar a entrar água no nosso quarto através da janela...

De manhã, na nossa rua, mal se percebia que tinha chovido. Já noutras partes de Luanda, as águas arrastaram a terra das bermas para a estrada, contrariando as nossas expectativas de as ver mais limpas. Apenas as árvores recuperaram o verde vivo que o pó escondera durante meses.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Hoje aprendi que...


... também se podem fazer carrinhos a partir de pacotes de leite.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O som do metal de um revólver no vidro


Ontem, ao fim do expediente, o Afonso telefonou a avisar que uma das ruas do Prenda estava novamente cortada por causa das obras. É uma cena recorrente, ao estilo de qualquer novela da TVI, em que nada de novo ou dignificante acontece: em cada repetição, aguardamos com ansiedade que seja finalmente aplicado um sólido tapete de alcatrão sobre a “superfície lunar”, mas quando o trânsito é restabelecido encontramos um tapete de cascalho e terra, que os esgotos que escorrem pelo bairro se encarregam de corroer novamente.

Trata-se da rua que liga a empresa ao centro da cidade, isto é, à nossa casa e a qualquer cliente que tenhamos de visitar durante o expediente. Também já houve uma ocasião em que cortaram a rua da nossa empresa a escassas centenas de metros desta, o que nos obrigou a dar corda aos sapatos. Dada a zona, e o episódio ocorrido ao cair do pano deste 10 de Fevereiro, esse exercício banal não se voltará a repetir.

Estivemos até depois das oito da noite a planear estratégias de trabalho com a nossa colega I., e acreditámos que àquela hora a tal rua já estaria aberta ao trânsito. Deviamos ter percebido, pela posição das barreiras, que tinham sido desviadas pelos moradores da rua e não totalmente retiradas pelos trabalhadores. O engarrafamento monstruoso, alguns metros adiante, não deixava grandes esperanças, e quando vimos parte do pelotão a desviar para uma estrada transversal, decidimos seguir quem conhecia os arredores, certos que tinham o mesmo destino que nós. Até determinado ponto do trajecto, tudo correu bem, mas já no Bairro do Cassenda, o trânsito voltou a parar.

Subitamente, um gandulo abordou a janela do pendura. Por uma fracção de segundo pareceu-me um vendedor ou um crava, mas as batidas no vidro e a ordem para abrir a porta soavam-me invasivas e agressivas demais. Quando vi o amigo dele, do meu lado, reforçando a ordem para abrir o carro com um revólver na mão, vi o caso mal parado. Resistir era um risco, mas abrir a porta seria baixar excessivamente a guarda, por isso apenas pedi à Paula para me passar imediatamente o dinheiro que tivéssemos na carteira, esperando que isso salvasse os passaportes (já era tempo de termos tratado da cópia autenticada). O som do metal de um revólver no vidro esquerdo, e de uma garrafa de cerveja no vidro direito, em coro com o baque oco dos puxadores das portas, fizeram parecer horas aqueles escassos segundos até as notas aparecerem. Abri o vidro e entreguei o maço de kwanzas ao que tinha a arma.

- Abre, c******! – insistiu.
- É todo o dinheiro que temos, a sério.
- Então dá o telemóvel.

Nem pestanejei. Deitei a mão ao bolso e entreguei-lhe o telemóvel da empresa (incluindo o cartão com os contactos de clientes) com tamanha rapidez que ele não pôs em causa que lhe dera tudo o que tinhamos de valor. Remédio santo, abandonaram o nosso carro, e não posso dizer que se tenham afastado demasiado depressa para o meu gosto.

O pior já tinha passado, mas a sensação de fragilidade mantinha-se. E se voltassem? E se, até ao fim daquele engarrafamento, outro grupo nos abordasse? Decidi fazer inversão de marcha e regressar ao Prenda, para vistas mais conhecidas. Nos primeiros minutos, a ansiedade de lá chegar era tanta que quase me apetecia levar tudo à frente. O medo já não era tão intenso, mas ainda não desaparecera completamente.

Ao fim de meia-hora já consegui gozar com a situação: como detesto a Nokia, de certa forma não tinha sido assaltado; podia dizer-se que tinha pago uns kwanzas a um brother para me livrar daquele trambolho. O prolongamento da comédia deu-se esta manhã, quando o M., o homem da logística da empresa, decidiu telefonar para o meu "ex-telemóvel "para falar com o ladrão, só para o sondar:

- Temos de nos encontrar, você tem de me ajudar, eu preciso do telemóvel.
- Ya, quanto é que você quer pagá?
- Não, você é que tem de dizer o preço que quer.
- Cem dólares...

Revendo a situação, encaramo-la como se de uma lição se tratasse (tal como um recém-encartado que só modera o seu excesso de confiança depois de enfiar o carro na traseira do vizinho da frente): não voltar a sair do trabalho àquelas horas absurdas e não voltar a frequentar certos trajectos, independentemente da hora. Felizmente o preço do banho de consciência ficou-se pelos danos materiais.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Viabilidade, produtividade, mentalidade, mobilidade, e outras coisas que vêm com a idade


Angola é, a par com a China e com a Índia, um dos países com maior crescimento económico. Mas não se pode dizer que os efeitos da crise global não são notados por cá: pela primeira vez na última meia dúzia de anos, aquela taxa vai ficar abaixo da barreira psicológica dos... 10%. Uma contrariedade, portanto...

No entanto, frequentemente dou por mim a pensar que este crescimento podia ser ainda maior se a produtividade também o fosse. O que, para usar uma expressão tipicamente angolana, «é complicaaado». Não é só o porto entupido de contentores, que atrasa as importações de equipamentos essenciais ao funcionamento das empresas. Não é só a lentidão natural dos processos, provocada pela burocracia da administração pública, pela inércia colectiva, e pela sede de gasosas. Esses talvez sejam os factores mais visíveis e mais comentados pelos portugueses que passam aqui uma temporada. Mas há outros, que até pode ser que tenham menos peso, mas que também ajudam... a atrapalhar.

Ainda hoje não engoli que um país exportador de petróleo, por só ter uma refinaria, seja importador dos seus derivados. Pior, a estes, ao contrário de quase tudo o resto, a lei da oferta e da procura não se aplica: o preço é absurdamente baixo, apesar dos postos de abastecimento estarem sempre a abarrotar. Ora, a meia-horinha da praxe perdida na fila está garantida; quem não o fizer ao fim-de-semana, durante os dias úteis vai chegar atrasado ao emprego, sem qualquer remorso.

Algumas funcionalidades modernas, a que nos habituámos há mais de uma década, ainda não chegaram cá. Enquanto em Portugal se pode fazer o pagamento de serviços nas caixas multibanco, na internet, e a partir de agora até nas lojas com TPA, em Angola o pagamento da água obriga a ir à EPAL, o da electricidade à EDEL, o do telefone à Angola Telecom, e o da televisão ao banco, correndo o risco de o sistema informático estar em baixo ou de se terem esgotados os impressos. Felizmente a empresa tem um funcionário que, um dia por mês, trata de todos estes assuntos, mas e o resto dos angolanos, vai fazê-lo quando?

A mobilidade – ou a falta dela –, mais do que um simples aborrecimento, é um entrave. E já o é apenas pelo facto de não haver transportes públicos decentes, de muita gente usar o carro próprio, e das ruas não estarem preparadas para tanto trânsito. A recolha de lixo em hora de ponta dá uma pequena ajuda, mas a cereja no topo do bolo são os cortes de estrada para repavimentação sem aviso prévio, que desviam o trânsito para as ruas circundantes. No caso da zona do Prenda/Cassenda, os desvios são feitos para dentro do musseque, e os cortes de estrada são para tapar os buracos com baldes de entulho. Vale a pena, portanto. Ou então não...

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Fora de Luanda III: Massangano


Semanas depois dos passeios da Cabala e da Muxima, continuámos em frente no entroncamento de Catete, tomando as indicações para o Dondo, onde o Afonso já tinha ido a trabalho. As fotos que ele mostrou deixam antever que esta cidade merece uma visita de várias horas, o que obrigará a madrugar na partida de Luanda, até porque a distância é maior e ainda há troços a ser pavimentados pelos chineses. Pavimentados, mas pouco, com uma camada de alcatrão demasiado sumítica, que pouco depois de aplicada começa a desaparecer. Qualquer semelhança entre uma obra chinesa e uma bugiganga qualquer comprada numa loja deles não é uma mera coincidência. Ainda há quem não tenha percebido que o demasiado barato não pode ser bom.

Mas o destino deste passeio era outro, seguindo a sugestão do Afonso, que tinha encomendado um carro a um menino de Massangano, e que pretendia pagar com um conjunto de lápis de cor e um livro para colorir. Massangano é mais uma povoação nascida nas margens do Kwanza. Não existe placa, pelo que o primeiro ponto de referência para deixar a estrada principal é um par de chaimites abandonadas após o fim da guerra.

Numa curva da estrada secundária, somos brindados com uma varanda sobre o Kwanza, capaz de nos arrancar comentários com muitos pontos de exclamação.



A 50 metros, duas mães esmagavam amendoim à sombra de um embondeiro. Tarefa demorada? Pois, «a pedra é pequena».

Adiante, outro desvio da estrada é assinalado por uma série de acácias que, em Dezembro, se decoram de vermelho para assinalar o Natal.




Chegámos. Vê-se menos gente nas ruas do que na Cabala, ponto de paragem por causa da travessia do Kwanza, e do que na Muxima, capital religiosa. Sente-se o efeito psicológico de estrada sem saída, que acaba no rio e deixa os habitantes da povoação longe da "civilização." Mas a presença de mais elementos herdados do tempo colonial, e o facto de preencherem uma área considerável, leva-nos a crer que esta terra já conheceu outra grandeza.






Encontrar um adulto não é imediato, mas não faltam crianças. As meninas treinavam para o que as espera quando tiverem um marido, o que há-de acontecer poucos anos depois de se tornarem férteis: dentro de um pequeno tacho, o peixe fisgado no Kwanza ganhava a cor do óleo de palma e o calor da fogueira improvisada. Ao lado, noutro tacho, coziam arroz com feijão.



Meninas e meninos esqueceram as brincadeiras quando viram chegar três brancos com máquinas fotográficas. Em poucos minutos perderam a timidez e, quando um deles percebeu que as máquinas permitem ver as fotografias depois de tiradas, ficaram eléctricos, querendo ver como ficavam, «este aqui sou eu». As mais velhas, de 11 e 12 anos, já com a vaidade a despontar, faziam pose e enxotavam (em vão) a concorrência, exigindo ser o centro das atenções.



Fiz-lhes a vontade por uns tempos. Não ficaram saciados, mas acabaram por não ter remédio senão acompanhar-nos no passeio pela povoação. Um dos rapazitos, de 7 anos, deu-me a mão no caminho. Dei por mim a pensar se o rapazito teria falta de uma figura paterna e, à pergunta do Afonso se preferimos a Muxima ou Massangano, naquele momento não consegui responder. Em poucos minutos o sacaninha desfez-me as dúvidas: ainda que timidamente, chamou-me cota e fez aquele gesto universal de roçar o polegar pelos dois primeiros dedos, como que a cravar trocos. Ora, eu lido muito bem com o meu cabelo grisalho precoce, e não foi o adjectivo que me deixou piurso, por isso fiz-me desentendido. Em breve voltou à carga: «cota, dá um dinheiro». Olha-me o pingente, hein! Para que é que ele queria o dinheiro, ele já saberá fazer contas, sequer? Ainda se pedisse uma bola (uma das meninas, à despedida, pediu uma boneca)...

Foi o único, porém, e a Paula trouxe histórias mais bonitas para contar, envolvendo o menino e a menina mais novos do grupo, mais cativados por ela do que pela máquina fotográfica. Ele, que com 4 anos possivelmente nunca tinha visto um branco, passava-lhe a mãozita pelo rosto como a descobrir algo completamente novo:

- Os láábios... o nariiiz... É mulata?
- Não... Sou branca.
- Ah...

Mas com a Mónica (a pequenita de cuecas cor-de-rosa e umbigo inchado que na foto abaixo ignora o fotógrafo e olha admirada para a “madrinha”) houve um amor correspondido à primeira vista.



No passeio a pé pela cidade, agarrou-se à saia da Paula, que lhe deu a mão. Sentada à porta da igreja, encostou a cabecita a ela. E, depois da forasteira ter perguntado o nome de toda a gente, foi a única que quis saber o nome dela:

- Como chama?
- Eu sou a Paula.
- De quê?
- Paula F[...]. E tu, és a Mónica de quê?
- Eu sou a Mónica da Ju'iana.

O diálogo era surpreendente. Uma criança pequena, numa povoação esquecida a dezenas de quilómetros da povoação vizinha, com tamanha noção de identidade e de família?! Este episódio deixou um jovem casal português a bater um bocadito mal durante dois dias e duas noites mal dormidas, durante os quais "sonhámos" em recompensar aquela doçura e aquela sensibilidade com a oportunidade de conhecer o mundo fora de Massangano.. Então e... se a malta fosse lá e “roubasse” aquela menina? Hum? Bora? Vamos lá e trazemo-la connosco, boa? E os pais? Ah, os pais querem lá saber da filha, só querem saber do dote que vão receber por ela.

Sosseguem: sabemos que mesmo que fosse aceite na sociedade Massanganense, seria ilegal no resto do mundo; era apenas um devaneio. Além de ser uma fantasia irrealizável, trazê-la para a “civilização” seria de facto uma recompensa? Ou um castigo? Então e oportunidade perdida de brincar com os pés descalços na rua sem cortar os pés num caco de uma garrafa? E quando crescesse e confrontasse os objectivos estabelecido na fasquia “ocidental” com as metas que as pessoas normais conseguem realmente ultrapassar? Naquela povoação, ela é apenas uma menina que aos 14-15 anos será entregue para casamento, aos 18 provavelmente já terá dois filhos, e cujas contrariedades na vida serão o tamanho da pedra com que esmaga o amendoim. Na Europa, enriquecer-se-ia com conhecimento, desejaria tudo o que os outros desejam (o príncipe encantado, uma carreira, uma casa, os gadgets da moda) e sofreria com tudo o que não conseguisse obter. O que pensarão as crianças africanas que conquistam o coração dos ocidentais, quando são levadas para os países deles e crescem segundo as regras deles? Ficar-lhes-ão gratas, ou com raiva deles por lhes terem roubado um futuro que pode não ter aspirações mas também não terá desilusões?

Ainda não voltámos lá, e não sabemos se alguma vez o faremos. Não queremos correr o risco de ficar a "bater mal" de novo.

Como estará a Mónica? O que será que recebeu neste Natal?