No domingo passado fomos fazer um piquenique perto de Cabala, na margem do Kwanza. Saindo de Luanda já se pode andar na rua sem que nos tentem vender alguma coisa, e até nos aventuramos a andar de máquina fotográfica fora do carro.
Enquanto a ponte não está pronta, uma barcaça subsidiada pelo Estado assegura a travessia de viaturas (até 3 de cada vez). A ideia de usar aquele meio de transporte oscila entre a normalidade de uma espécie de ferry em ponto pequeno, e a novidade de estar em África e avançar o jipe pela rampa até uma estrutura improvisada para atravessar um rio onde "diz que" há jacarés. Um rapaz que me viu à espera quase me pediu desculpa pela solução arcaica:
- Em Angola é assim...
Confesso que fiquei atrapalhado com a quase vergonha dele. E nem se justificava; se a barcaça cumpre a função, não podíamos exigir mais nada.
- Hã?... Nã, está óptimo!
A travessia é curta, por isso não perdi um segundo e desatei a fotografar a vista para montante e jusante. Senti-me observado por um dos funcionários e por uma menina de 10 anos. Pedi autorização para os fotografar também. Era tudo o que ele queria naquele momento... Fez a sua pose, e segundos depois pediu dinheiro. Tudo bem, a travessia era de borla mas já tinha a ideia de dar qualquer coisa. Achou pouco os 100 Kz que a Paula lhe deu, quis 1000, e ela riu-se na cara dele. Quando o Afonso lhe lembrou que a travessia é paga pelo Estado, o homem achou melhor aceitar antes que mudássemos de ideias e ele acabasse de mãos vazias.
Na margem oposta a Cabala há um mangueiral com umas sombras convidativas (e também uma cobrazita de um metro e picos de comprido, mas esta assustou-se com a nossa chegada e fugiu com estardalhaço por entre as folhas secas). De marmita na mão, procurámos um espaço para nos instalarmos perante o espanto dos locais. Um mais velho, ao ver 3 brancos a comer sandes no meio do povo, olhou fixamente para nós, com um ar entre o pasmado e o assombrado, e a trocar os passos. O que estariam aqueles 3 a fazer ali, em vez de estarem com os outros ricos?
Ter um tom de pele mais deslavado ou guiar um carro grande em Angola é equivalente a ter USD pintado na testa. As zungueiras querem-nos vender fruta e legumes - pacífico, é melhor do que a do Jumbo e mais barata do que a da Casa dos Frescos. Os controladores de Luanda querem dinheiro para tomarem conta do carro - deixem-me rir. Os polícias estão numa posição privilegiada, porque o serviço que nos prestam não é passível de recusa. Estou a escrever isto e a imaginar um diálogo:
Polícia: - O Senhor cometeu uma infracção e vou ter de o multar.
Condutor: - Não é preciso, obrigado. Depois, depois.
Não foi bem assim que a coisa se passou horas depois, no centro da capital, a menos de 500 metros de casa. Apesar de ainda ser dia, tive a triste ideia de ligar os médios na viagem de regresso, hábito que adquiri há vários anos, não para ver mas para ser visto. Ora, uma coisa é sobressair na estrada pelos outros ocupantes da via, outra é sobressair nas ruas da cidade super-vigiadas pela polícia de trânsito. Ainda por cima, tinha encostado um quarteirão antes para fotografar uma esquina de um edifício que já andava a namorar há semanas. Só faltou cobrir-me de pólen e ir ter com a colmeia.
- Boa tarde. Porque é que o senhor vinha de luzes acesas?
- Ah, para os outros condutores me verem melhor.
- O senhor não sabe que é proibido circular de luzes acesas durante o dia? Vou ter de o multar.
Ora, até então desconhecia que o Código da Estrada de Angola é o mesmo desde 1954. Assumi que houvesse mesmo uma regra estúpida que proibisse o uso de médios durante o dia. E disse-lhe qualquer coisa como «o senhor é que sabe», enquanto lhe passava o passaporte com o VRN para a mão.
E não é que o gajo não se assustou? Nem VRN, nem matrícula verde, nem a colega a dizer-lhe que não valia a pena a multa, bastava só alertar o condutor. Nem quando o Afonso insistiu para ele escrever o nº de agente na multa e a colega lhe segredou ao ouvido que estava feito connosco.
Não me considero acima da lei, mas que diabo, não há nada no Código da Estrada de nenhum dos países que proiba ter os médios acesos de dia. Chegámos a casa e decidi não pensar mais no assunto. O Afonso reparou que a multa não tinha o valor preenchido e decidiu ir entalar o agente. E aí a conversa mudou: a infracção não era circular de luzes acesas, porque isso não é proibido; a tal infracção ao artigo 30º, número 2, alínea a), era que eu supostamente vinha de máximos, a encadear os outros condutores. Ora pôrra, se é para me multarem, ao menos façam-no por alguma coisa que eu tenha feito realmente!
Já paguei a multa: 5247 Kz, cerca de 50€. Estou a borrifar-me para o valor, não é isso que está em causa. O que me lixa é que o gajo acaba por levar a melhor injustamente (não levou gasosa, mas leva a comissão da multa, que em Portugal é mito mas em Angola é real). Os senhores da GNR-BT conseguem ser mais honestos, mesmo quando nos picam com um BMW ou com A4 descaracterizado na auto-estrada, ou se escondem atrás de uma árvore numa recta no Alentejo. Ao menos com esses só é multado quem "quer".
Agora só tenho de esperar que os documentos do carro cheguem à esquadra para que o motorista da empresa, rato velho, nascido em Lamego mas com 47 anos de Luanda, os recupere. Vamos ver se a novela acaba aqui.
5 comentários:
Da última vez que ouvi falar da cobra, não media mais de meio metro. Será que cresceu assim tanto desde o fim-de-semana passado?
Ficamos à espera das fotos a montante e a jusante da travessia!
Quanto à multa, olha, é uma história que fica para contares aos teus...netos, daqui a cinquenta anos! Ih1Ih!
Bjs
tia mica
Na altura cortei um bocado à cobra, senão a Paula ia comer dentro do carro... ;)
extraordinário.
como foi especial esta leitura.
saudações
http:\\coresemtonsdecinza.blogspot.com
fiquei sem conhecer a esquina que tanto namorou.
num proximo post.
a multa, pois entao, é a realidade (real ou adulterada), mas é.
saudações
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