quarta-feira, 28 de maio de 2008

Mudança


Se os comentários dos amigos a quem promovi este cantinho me enchem de orgulho, as visitas de outros amigos, que não conheço pessoalmente mas com quem partilho agora um ponto em comum, deixaram-me igualmente inchado mas, acima de tudo, surpreenderam-me. Sejam todos muitos bem-vindos, apareçam quando quiserem. Espero apenas que compreendam que nem sempre irei escrever sobre Angola; ocasionalmente irei dar notícias nossas ao pessoal do rectângulo.

> Hora H
Nos dois últimos dias em que habitámos na Maianga, a noite caiu sem electricidade no bairro, como se este previsse a nossa saída. Entre meia-dúzia de piadas a propósito da taxa de natalidade no tempo dos nossos avós, ou do romantismo de jantar sandes mistas à luz de velas, a contrastar com a alta tecnologia de uma candeia de led’s dos chineses, não pudemos deixar de pensar que a mudança de casa vinha na hora H. É que se começasse a tornar-se um hábito faltar a electricidade naquele bairro à hora a que nós precisávamos dela, o espírito de gozo com que encarávamos a situação era capaz de perder um pouco do gás... Mas, felizmente, tudo tem corrido de modo a que nenhuma das concessões que tivemos de fazer para estar aqui seja problemática.

> O Casarão (que não é em Queluz de Baixo)
Mas não foi por causa do gerador que esta mudança foi agendada. O que se passa é que vamos dividir o tecto com um amigo, que irá trabalhar connosco a partir do mês que vem, e a empresa achou que precisávamos de mais espaço.

Bem, espaço é coisa que não falta nesta casa! Rapidamente nos questionámos se o anterior ocupante não se perdia, sozinho aqui dentro, e ao fim de algumas horas em que era difícil ouvirmo-nos se não estivéssemos na mesma divisão, brincámos que se calhar é melhor arranjar uns walkie-talkies...

O pior é quando for preciso limpar isto tudo! Dizem as nossas chefes que, em Luanda, quem tiver possibilidades de pagar uma empregada, deve mesmo tê-la, porque vai precisar. E não é só para ir limpando (mal) o pó e lavando (mal) a louça, é também para ter alguém que vai buscar a garrafa de gás quando acaba, ou sabe onde arranjar água quando esta falta, coisa que um europeu não sabe. Sinceramente, tremo só de pensar onde se vai buscar água quando ela não corre nas torneiras.

> A distância ao ninho ficou mais curta
Sim, é verdade: já houve uma altura em que as pessoas vinham trabalhar para Angola, o contacto com família e amigos em Portugal era escasso e caro, as notícias de casa tardavam a chegar porque nem sempre havia televisão, e isso não fazia confusão a ninguém. Estávamos nos anos 60-70.

Mais a sério, chegar a uma casa, encontrar um modem ADSL deixado no escritório, ligá-lo, e cinco minutos depois estar a abrir o google pode parecer banal, ou até uma borla simpática, mas dados os antecedentes é muito mais que isso. É o regresso da ligação ao resto do mundo! Nunca pensámos dar tanto valor uma net de 256 Kbps! Não que a permanência aqui em Luanda esteja a ser um castigo, nada disso, mas o contacto com o ninho não deixou de ser uma necessidade.

> (Quase) afogados na nossa própria m...
Mas nem tudo são rosas, e nem tudo cheira tão bem como elas. Desde o princípio notámos que tínhamos uma fonte (esporádica, é certo) debaixo de uma das sanitas. Dias depois a outra seguiu-lhe as pisadas, os ruídos da canalização juntaram-se mais tarde à festa, e quando demos por nós, certa noite «sentíamos presenças» de resíduos que... não desciam. Como temos sido tratados nas palmas das mãos pela empresa (concorrência, roam-se de inveja... :P), no dia seguinte já estava uma equipa de desentupimento a repor a normalidade. Ufa!

> Biodiversidade
Não sei se por estarmos mais perto do solo (1º andar), se por estarmos mais perto da orla marítima (800 metros em linha recta), se por haver umas ranhuras sob a porta da entrada e na janela da cozinha, se por todas as anteriores ou se por nenhuma, a fauna nesta zona é muito mais abundante do que na casa anterior. Todos os dias temos, esvoaçando à volta da porta, à espera que a chave a abra, um grupo das criaturas mais democráticas do planeta (branco, preto, amarelo, cabrito, e picadela de mosquito). Também já recebemos - à chinelada, frise-se – um número indeterminado de visitas dos Só Pra Contrariar na porta do frigorífico.

Mas lá íamos gracejando, e até mesmo quando nos cruzámos nas escadas do prédio com dois exemplares de outra espécie achámos muito mais light comentarmos «olha ali o Mickey» do que queixarmo-nos da má vizinhança. A situação deixou de ter piada quando um petiz desta família badalhoca decidiu aventurar-se na nossa sala. Voltou a ter piada - excepto para ele - quando concluí que aquele pequeno corpo é tenro demais para servir de bola de golfe.

Mantenho a vontade de, quando o trabalho o permitir, ir passar um fim-de-semana prolongado ao Parque Nacional da Kissama. Pessoalmente, aprecio a atitude das espécies animais que não tentam criar laços de excessiva proximidade com os humanos logo ao primeiro contacto.

> Usos e costumes
Querem conhecer algumas das expressões e hábitos de Luanda? Não? Então eu conto na mesma.

Antes da gasosa se referir a dinheiro, era apenas o “nosso” refrigerante (Fanta, Coca-Cola, ou outras marcas, mas isso vai dar uma posta um dia destes). Imagino que o hábito de pedir «dá uma ajudinha para comprar uma gasosa» tenha evoluído para um mais objectivo «dá uma gasosa...».

Uma expressão que acho curiosa é a forma quase poética como se deseja boa noite: «uma noite feliz». Também a atitude de respeito com os mais velhos tem uma certa doçura: qualquer homem ou mulher a partir dos 40-50 é chamado de «pai» ou «mãe» por qualquer jovem que nunca o/a tenha visto. E não tem a ver com o número assustador de órfãos provocados pela(s) guerra(s), mas com a veneração ao mais velho como pessoa sábia.

Mais mundano é o gesto de agradecimento: em vez de um aceno com a mão aberta, como nós fazemos, é vulgar usar-se o polegar, como nós dizemos «porreiro pá!». Por falar em agradecimento, é comum recebermos um «ok, obrigado senhor(a)» meio encabulado, quando damos os bons dias a alguém que conhecemos mal e com quem nos cruzamos casualmente.

> Sobreviventes
Já escrevi anteriormente sobre os muitos caminhos de terra batida e a quantidade de gente que ganha a vida a lavar carros. Vou mais longe: em apenas 4 semanas, já estou esmagado com a visão de negócio do luandense! Chegou um casal de brancos ao prédio? Em 48 horas já está a vizinha de cima a bater à porta, a oferecer-se para empregada doméstica. Os assaltos são preocupantes? Colocam-se três seguranças a vigiar um prédio com 6 apartamentos (pagos pela quota do condomínio, suponho, o que deixa zero para a manutenção dos espaços comuns). Num dia o tal casal chegou do trabalho e não conseguiu estacionar o carro à porta? No dia seguinte os seguranças guardam lugar! Se as ruas de Luanda se “Helsinquizassem” para conforto dos imigrantes, os locais iam ter a vida mais difícil.

> Toda a ajuda tem um preço
Mas os seguranças não foram os primeiros a lucrar com a nossa dificuldade em arranjar lugar para estacionar. O primeiro rapaz, que até ia apenas a passar quando chegámos das compras, foi directo ao objectivo assim que pusemos o pé fora do carro - «dá um trocado para uma Blue» - com uma certa musiquinha na voz. Hesitámos. Damos-lhe dinheiro ou damos-lhe logo o que ele diz que quer comprar? Meto a mão no saco das bebidas e pergunto-lhe «Queres Blue ou Cuca?». Ao ouvir a proposta de receber uma cerveja em vez de um sumo, o rapaz rasga ainda mais o sorriso. Claro que depois já queria duas, mas a Paula pôs-lhe travão. Na boa, deu-me um aperto de mão e seguiu todo contente, a matar a sede.

Dias depois, tive de contar com a boa vontade de um dos miúdos que vendem bugigangas, para conseguir arrumar a banheira. Comprometi-me a dar qualquer coisa quando voltasse, e cumpri (lá estava debruçado no capot, paciente, disposto a cobrar a promessa), trazendo um sumo directamente do frigorífico para a mão dele. Mais uma vez, o sorriso foi maior do que se lhe tivesse dado o valor da bebida em kwanzas.

Tomámos então uma decisão: na próxima ida ao Jumbo, vamos trazer um stock de refrigerantes e cervejas para agradecer as gentilezas. Sai em conta, e a satisfação parece ser maior.

Por hoje é tudo
Cris, desculpa, ainda não foi desta que houve fotos.

A todos, desejamos uma noite feliz.

5 comentários:

Nuno Perdigão disse...

Antes de chegar ao final já ia esboçando o que mais tarde encontrei: é passar a andar com um 'pack de esmolas' no carro! Enfim... faltou-me a originalidade!
Abraços e B'jocas! :)

Lopesco disse...

Essa fauna é uma desavergonhada! Logo nos primeiros dias! Nem se paresentam nem nada.. tss tsss.

Abreijos lusos!

Lopesco

Trebaruna disse...

Bem!!
Continuo a vibrar com as vossas aventuras diárias!
Ricardo não pares de escrever!!
Sim senhor!

Beijocas

cris disse...

Não faz mal, eu espero...:)
Beijocas

André disse...

Ah pois é xor Ricardo....umas fotitas neste blog seria um toque de classe! Aguardamos....