sexta-feira, 16 de maio de 2008

Adaptação


Antes de mais nada, as minhas desculpas. Primeiro, por ter estado tantos dias sem alimentar o blogue; segundo, por vos brindar com um testamento ainda maior que o anterior. Acho que não é suposto dissertar sobre vários temas de cada vez que escrevo, mas não tem sido fácil aparecer com a frequência que gostaria. E, por enquanto, não consigo prever quando é que conseguirei ilustrar o que escrevo com imagens. Espero que a descrição seja suficiente.

Ao fim de quatro longos dias, durante os quais a Paula estava tão desorientada que tentou derrubar um pilar da garagem com o carro, lá se juntou a mim.

> A “nossa” casa
... nos primeiros tempos. Neste fim-de-semana iremos para um apartamento num prédio pequeno e sossegado, mas até lá vamos ficando num dos muitos prédios altos de Luanda do tempo colonial que não têm manutenção provavelmente desde 74-75. Não há vidros nas portas do prédio, e olhando para as dos elevadores faz-se logo o filme completo: um dia avariou um, não se mandou arranjar (ou por falta de dinheiro, ou por falta de pessoal especializado), depois o outro, e a malta foi-se habituando a viver sem eles, apesar do prédio ter 7 andares. Não deixa de ser irónico, quando comparado com o nosso prédio de Tercena, onde há uns preguiçosos que usam o elevador para subir UM andar!

Dirigimo-nos às escadas, com 4 patamares pela caminho até ao nosso destino. Quem me conhece, sabe que não me caem as perninhas por tão pouco, e só quando comecei a pensar na botija de gás é que dediquei alguns segundos a preocupar-me com este assunto.

À medida que vamos subindo, reparamos que os apartamentos têm uma primeira porta de grades (a nossa com cadeado, que às vezes custa a abrir e nos prega uns valentes sustos), dois ou três degraus, e a tradicional porta de casa. Já houve ocasiões em que ouvi o som destas portas a abrirem e fiquei na dúvida se alguém estaria a tentar visitar-nos sem pedir licença. Depois, passou-me a paranóia.

Entramos, e salta à vista que a empresa teve o cuidado de fazer obras. E, quanto às mordomias, temos cá quase tudo o que a nossa casa de Tercena tem.

> A moeda
Depois de há uns anos termos adoptado o euro, faz alguma confusão voltarmos a ver valores da escala de grandeza do escudo (1 € equivale a 116 Kwanzas, logo 1 Kwanza é pouco menos do que 2 escudos). Ainda por cima, só são utilizadas notas, mesmo para quantias pequenas que na Europa são pagas com moedas, como 5 a 200 Kwanzas (5 cêntimos a 2 euros).

Nota informativa: embora o Estado queira combater a utilização de dólares nas transacções diárias, para reforçar a identidade da divisa do país, vai ser muito difícil impedir as pessoas de pensarem em USD.

> O dia-a-dia em Luanda
Fechem os olhos. Conseguem imaginar 4 a 5 milhões de pessoas, aproximadamente a população das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, na área... da cidade de Lisboa? Porquê «4 a 5 milhões»? Porque não se sabe ao certo quantas pessoas habitam nos musseques, bairros caóticos cuja semelhança com as zonas menos recomendáveis da Amadora não é coincidência. As autoridades têm tentado diminuir esta densidade populacional, oferecendo condições para que estas pessoas se instalem na periferia, mas muitas delas acabam por voltar. É que em Luanda é onde ainda vão conseguindo fazer algum dinheiro, a vender fruta ou bugigangas na rua, a lavar carros ou a fazer outras tarefas braçais, a pedir ou, como em qualquer capital que se preze, a roubar. Felizmente, apesar das carências, Luanda ainda está longe da criminalidade violenta do Rio de Janeiro.

> Working at the car-wash
Dissertar sobre a lavagem de carros parece um tema desinteressante, mas tratando-se de Luanda dava quase um case study. Por um lado, é proibido fazê-lo na via pública, e se os fiscais virem vão imediatamente pedir uma gasosa ao condutor do veículo. Por outro, é o que mata a fome a muita gente. Grande parte das ruas são de terra batida, e mesmo as principais têm uma teimosa camada de pó, o que torna impossível um carro manter-se limpo durante muito tempo.

Nas traseiras do nosso prédio, em zona privada, há um grupo de rapazes que lava os carros dos arredores. Uma destas manhãs um deles ofereceu-se para lavar o jipe, o que aceitei porque bem precisava. Não tentou ser pago antes da obra feita, como o Miguel me alertara que muitos fazem, e na verdade até fez um bom trabalho. No fim, quando me dispus a pagar generosamente (500Kz=4€), o sacana diz-me que ainda falta dinheiro. Como vocês sabem, quem tenta ganhar tudo de uma vez comigo, perde um cliente. Mas a lata deles não conhece limites: dois dias depois, quando vou a sair para o trabalho, tinha o amigo dele a lavar-me o carro (que ainda não precisava) sem eu lhe pedir.
- Ah e tal, atiraram comida lá de cima.
- Não tenho dinheiro para te dar.
- Então e mais tarde?
- Depois, depois.
Andou o resto do dia e o dia seguinte a chagar-me o juízo cada vez que me via. Lá lhe dei 70 Kz (60 cêntimos) para não me chatear mais, e disse-lhe para não me voltar a lavar o carro sem que lhe pedisse.

> A nova Luanda
A nova metrópole desenvolve-se sobretudo em Belas, a sul da capital, com avenidas largas e infra-estruturas destinadas ao “p’ogresso” (como diria o nosso PR), como o centro de congressos e o Belas Shopping. Apenas dois reparos: primeiro, enquanto o alargamento da Estrada da Corimba não estiver concluído, metade do caminho faz lembrar o IC19 em obras, e a outra metade seguinte é comparável à estrada Caparica – praias em Agosto (acho que dá para terem uma ideia...); segundo, compreendo a necessidade do shopping para satisfazer os ocidentais, mas talvez não fosse necessário terem construído um espaço que nem parece estar em Angola.

> «Quemer» e «buber»
Ainda não houve muito tempo para experimentar a gastronomia típica; por enquanto, ficámo-nos pelos acompanhamentos: feijão manteiga em óleo de palma (muito bom) e fundje (uma massa feita à base de farinha de mandioca, que não é nada de especial nem em sabor nem em consistência). Muamba, até ao momento, só no título do blogue. :P

Quanto aos preços, vou ser curto e grosso: comer e beber em Angola é CARO! Exemplos? Já que o preço do arroz e do leite têm dado que falar em Portugal nos últimos meses, então vejam estes números e pasmem: um quilo de arroz, 1.29€; um litro de Mimosa meio-gordo, 1.72€! Uma garrafa de água de 1.5 litros fica no mínimo por 0.78€, uma lata de atum custa 1.59€, e uma de cogumelos não fica por menos de 2€. E o cúmulo da ironia é estar em África e um pacote de 250 gramas de café custar 4.30€...

Além disso, é fácil encontrar “frescos” que, honestamente, deviam ser chamados de “mornos”. No supermercado sul-africano do shopping da moda, vimos queijo e paio que devem ter sofrido um bocado – coitados – até chegarem ao frigorífico, carne e peixe que não sei bem se eram para comer ou se eram para olhar de longe, e iogurtes expostos no corredor do leite (muito bem, palmas para estes senhores!). E o slogan deles é “frescos de confiança”. Brincalhões!

Outro aspecto interessante é a liberdade de escolha, ou a falta dela. Quem mora nos arredores de uma capital europeia tem aproximadamente, e sem qualquer exagero, 14 hipermercados e 35 supermercados por concelho, 68 marcas por cada produto, e pouco falta para ser permitido fazer compras às duas da madrugada. Aqui, além do supermercado de bairro comparável ao Dia, e do supermercado sul-africano no shopping (no qual é raro encontrar uma marca portuguesa), há UM hipermercado, o Jumbo, aberto de 2ª a sábado, das 9 às... 19 horas! E é um oásis, porque dos sítios por onde passámos, é o que tem mais qualidade e variedade.

> «Oh trim-tim-tim, passear na rua»
Dois dos conselhos que mais ouvimos são trancar o carro assim que entramos e não andar a falar ao telemóvel na rua (ou melhor, não mostrar nada de valor na rua; por isso, se são tias de Cascais e não resistem a mostrar os oiros, não vêm cá fazer nada).

Como, só na nossa rua, nos últimos 6 meses houve um assalto e uma tentativa a pessoas da empresa, ando a mirar pelo canto do olho, desconfiado, quase toda a gente com quem nos cruzamos (já a Paula parece bem mais descontraída). Mas tenho de admitir que, pelo que vimos desde que chegámos, quem nos aborda no caminho entre casa e o supermercado são rapazes novos a pedir ou os vendedores ambulantes. Talvez o receio seja despropositado, ou talvez venha a ser a nossa defesa.

> O candongueiro
Em Luanda quase não há autocarros (porque são demasiado grandes para as ruas, e como não conseguem furar pelo trânsito demoram 2 horas a chegar ao destino), nem há táxis como os do “mundo ocidental”; há um enxame de carrinhas – maioritariamente Hiace – azuis e brancas que fazem um papel intermédio. O André, que está ali a meio caminho entre o aventureiro e o “ganda maluco”, teve a ousadia de experimentar este transporte, quando o motorista da empresa faltou. Eu quero acreditar que o privilégio de trabalhar para a concorrência me garante que nunca terei de passar pelo mesmo... :P

Estes furgões, na Europa, têm no máximo 9 lugares, mas aqui consegue-se inventar espaço para encaixar mais um banco. Só que a lotação é cabe-sempre-mais-um, nem que o cobrador tenha de ir com a bunda na janela!

São vistos como um mal necessário. Por um lado, servem demasiada gente para se poder passar sem eles. Por outro, os condutores destes táxis são tão imprevisíveis que até os restantes condutores, que estão longe de serem um exemplo de disciplina, fogem deles. E, à boa maneira taxista, as paragens de candongueiro são como o amor e a cag*neira: onde der vontade, e quem vier a seguir que espere.

Nota para o Lopes: não vamos encontrar a vossa Mitsubishi recém roubada com a matrícula original, mas o que não falta aqui são candongueiros e ligeiros com os autocolantes ovais com as letras D, DK, NL, etc. E, ocasionalmente, lá encontramos um furgão que ainda tem a publicidade da empresa portuguesa que ficou sem ele. :-D

> Circular
Há uma semana fui com o Miguel e a Ana à baixa, porque eles queriam despedir-se da chefe e eu ainda não a conhecia.

Aqui, esqueçam lá os optimistas 20 a 40 Km/h de que “falei” anteriormente! Tirem-lhe o zero!!! O único evento vagamente comparável em Portugal, é quando, a 31 de Julho, meia Lisboa quase se atropela a caminho do Algarve. Só que, em Luanda, encaixam três filas de trânsito onde em Lisboa encaixam duas... e... andam scooters conduzidas por rapazes sem capacete (estão em vias de ser proibidos, porque atrapalham a identificação de quem anda a roubar por esticão!) a serpentear à toa pelas nesgas entre os carros... e... quase ninguém atravessa nas poucas passadeiras que existem, e aqui e ali há uns maduros que se atiram para a estrada nas calmas e sem ver! Isto, já para não falar nos vendedores ambulantes: se nas ruas em que se anda devagar eles mostram as suas mercadorias na berma, naquelas em que quase não se anda, eles circulam também entre os carros. Ainda bem que a empresa fica perto de casa, aliás fica tão perto que até perdemos menos tempo no trânsito aqui do que em Portugal.

E não é só por o trânsito ser de loucos que é pouco aconselhável um europeu começar logo a conduzir em Luanda mal chega. É que os polícias de trânsito, como sabem que os “pulas” têm mais dinheiro que os locais, quando vêem um tentam logo sacar dinheiro para uma “gasosa”. É conveniente ter uma cópia autenticada do passaporte para evitar passar-lhes o original para a mão.

Só ao fim de dez dias tive todas as condições para pegar na “banheira” (um Vitara de 7 lugares e motor 2 litros V6 a gasolina, que bebe como um desalmado), o que me permitiu ir vendo como se faz para fazer o mesmo, e acho que não me saí mal. Um dia depois, o nosso guia estava relutante em nos encaminhar por um musseque para escapar a um mega-engarrafamento, e ficou surpreendido por não me ter feito rogado. Muitos ocidentais não o fariam, diz ele. Quatro dias depois, já por nossa conta, apanhámos trânsito a caminho do trabalho, decidi confiar no meu sentido de orientação para encontrar um caminho mais desafogado... e correu bem!

> A 5000 Km da Europa
Não me ocorreu subtítulo mais sugestivo para ilustrar a sensação de distância que tivemos durante a última semana. Já contávamos com falhas de energia, dependência do gerador, e net doméstica lenta. Na verdade, as falhas de energia não têm sido dramáticas (se bem que, depois da primeira, o ar-condicionado da sala começou a armar-se em parvo), apesar da bateria do gerador estar há 3 semanas à espera que um rapaz a venha cá trocar, e a net em duas semanas e meia funcionou duas noites.

Mais inesperada foi a avaria de um dos servidores da empresa, que a deixou um dia e meio sem mail e sem Internet. Isto, coincidindo com uma série de noites quase consecutivas em que o satélite de tv também quis dar um ar da sua graça. Após vários dias sem saber o que se passava em Portugal, lá apanhámos um telejornal e ficámos a pensar se foi mesmo há apenas duas semanas e picos que deixámos o rectângulo. Com que então a gasolina aí já vai em 1.48€ por litro? Deixem-me fazer-vos inveja: aqui custa 0.42€... E afinal, como ficou a luta pelo 2º lugar da Liga, e quem subiu? Já o Santana e o Jardim continuam na mesma, pelo que vemos. :-P

> Então e trabalhinho, hein?
Após cinco dias seguidos (feriado e fim-de-semana incluídos) de injecção de conhecimentos, veio a prova de fogo: em menos de uma manhã, já tinha um sul-africano e um chinês a contactarem-me em inglês macarrónico, o primeiro para saber o avanço dos projectos em curso, e o segundo a querer um encontro para acertar detalhes de um contrato em vias de ser assinado. Ainda por cima, durante o horário de trabalho, o Miguel estava de regresso a Lisboa, logo totalmente incontactável, o que me obrigou a desenvencilhar-me sozinho. Só faltava, ao fim da tarde, uma “pequena diferença de opiniões”, entretanto resolvida, de um dos portugueses do grupo (tinha de ser... os sacanas dos tugas são tramados). Digamos que foi um primeiro dia de trabalho cheio de emoções.

E as emoções têm continuado. Primeiro, porque houve pouco tempo para o Miguel e a Ana nos passarem todas informações que seria necessário, e a comunicação nem sempre tem sido possível no momento em que surgem as dúvidas. Depois, as funções da Paula também serão diferentes de qualquer coisa que já tenha feito, porque o lugar em que à partida se encaixaria melhor já tem uma cara, mais dedicada à formação e consultoria, .

À medida que os dias passam lá nos vamos adaptando, com o optimismo de que, quando a máquina estiver oleada, ficaremos com uma experiência que, há uns meses atrás, julgávamos impossível.

> Até à próxima...
E, pegando nas palavras que ouvimos há dias de um animador de rádio de Luanda, «volto quando Deus quiser»... :-D

7 comentários:

GATO PRETO & GATO BRANCO disse...

Olá Rad!

Gostei muito do teu blog, não sabia desta tua veia artística!
Ganhaste uma leitora assídua, fico a espera de mais...
Boa sorte,

Beijos

Cecília

Lopesco disse...

Fónix!!!

Como disse a Cecília ( que eu não conheço e já estou a tratar por TU... :p ) eu tnambém não sabia que eras tão eloquente com as palavras! Estou a adorar as tuas reportagens! Manda bala! Ou Muamba!

Abreijos Lusos!

Maria CR disse...

gostei francamente da descrição. Faz-me lembrar as de alguém que também se encontra por essas bandas, mas mais para sul e já há uns valentes meses. Tem a vantagem de encontrar os alimentos mais frescos e com menos trabalho.
Boa sorte para a estadia

linda

inaara & ilyas disse...

Caro RAD, aceite um conselho de alguém que já aqui vive há 5 anos: não descurem os aspectos de segurança. Há muitas armas em Luanda e os meliantes não hesitam em usá-las! Não falo de notícias de jornal ou de boatos - falo dos muitos relatos em primeira mão que tenho ouvido dos meus amigos e conhecidos durante estes 5 anos. Muitos mesmo. E muito violentos. Em plena Luanda. Em pleno dia.

Nuno Perdigão disse...

Continuem com as crónicas, que nós por cá nos vamos divertindo. Não vamos dizendo quem ganha a taça ou liga, quem vence eleições ou quem é processado, pois não vos queremos desinteressar dos telejornais! :D
Como é?!? Ah... "gandas malucos"!!
Abraços e B'junfas!

HArede disse...

Pois é, pensavas que eram só belezocas morenas e de biquíni mas não...
Conseguíste criar leitores assíduos do teu blogue devido à tua facilidade de escrita e ao teu humor especial.Cá ficamos à espera de mais, muito mais.
Vai escrevendo que nós gostamos.

"Mungueno"
da Anabela e Henrique
Queluz

André disse...

...e para quem está aí há meio 3 semanas, reportando a data deste post, já andas bem informado e vais-te orientando!

Também digo o mesmo da segurança! CUIDADO...não viste a velocidade com que o 50 Cent foi palmado?

Quanto ao Candongueiro...só custa o principio...depois ficas fã! :))