quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Balanço


As passagens de ano são épocas curiosas: em teoria não existe motivo nenhum para lhes darmos mais importância do que ao resto do ano, mas instala-se esta carga psicológica de fecharmos um capítulo, fazermos o balanço e iniciarmos um novo. Frequentemente prometemos a nós mesmos que vamos dar uma volta de 180º, corrigir tudo aquilo que fizémos de mal, e que as atitudes que nunca tomámos e que passaremos a tomar serão determinantes no resto da nossa vida.

2008 é certamente um dos anos que vou recordar por bons motivos. Não porque tenhamos tomado alguma decisão drástica no seu início, até porque o pontapé de saída não dependeu de nós. As oportunidades surgem por uma sucessão mais ou menos incontrolável de factores que acabam por nos favorecer. Agarrada a oportunidade no início, o principal desafio é provarmos ao longo do tempo que somos as pessoas indicadas para o que esperam de nós. Tratando-se de Angola, o desafio engloba vários obstáculos: as falhas logísticas, os hábitos enraízados na cultura, os focos de atrito entre escalões sociais, e o ambiente.

A adaptação depende, primeiro, da atitude. Há quem parta para uma metrópole africana apoiado apenas no lirismo da aventura, qual Carlos Pinto Coelho no «Acontece», convencido que vai desbravar trilhos em buscas de aldeias remotas. Há quem tenha uma atitude superior de «os pretos são todos burros, vieram das árvores e têm de ser tratados como tal». E há quem venha tão à toa que apanha um choque quando percebe que os problemas do dia-a-dia não se resumem a mosquitos, baratas e faltas de água ou de electricidade.

As condições de alojamento podem ser determinantes. Em qualquer casa de Angola haverá bicharada indesejável, os tais cortes no fornecimento de serviços que nos habituámos a considerar omnipresentes, e vizinhos que olham os estrangeiros como ricos. A quantidade e a qualidade deles fará a diferença entre uma estadia num país com menos luxos do que o nosso, ou um castigo. Sem esquecer que, mais uma vez, a atitude também pode ajudar a relativizar e a resolver problemas, ou pode ajudar a criá-los.

Os hábitos angolanos são demasiado complexos para explicar em duas ou três ideias demolidoras. Para começar, tal como em Portugal não se pode cair no erro da generalização - juntando lisboetas, portuenses, beirões e algarvios no mesmo saco -, em Angola no mínimo é obrigatório separar Luanda do resto. Em Luanda (sobre)vive quase o dobro da população da Área Metropolitana de Lisboa, em pouco menos de um terço da área. Muitos deles, a esmagadora maioria, foram largando, ao longo de 30 anos, mas sobretudo entre 1992 e 2002, as terras onde nasceram. Instalaram-se sob tectos de chapa de zinco, apoiados em paredes de tijolo cinzento, que dispuseram no terreno de forma caótica, tornando a circulação asfixiante, anárquica e, por vezes, quase selvática. Tratam o (imenso) lixo não biodegradável como sempre foi tratado o lixo orgânico. No passado, os ricos pagavam para não carregarem um simples saco de compras, e grande parte dos mais novos de hoje, que cresceram sem pais e/ou sem valores, preferem ficar na rua encostados à parede à espera de um pretexto para ter uma nota fácil, a procurar um emprego estável. Outros decidiram imitar os congoleses que chegaram e logo fizeram negócio nas ruas. Entre os funcionários com poder para facilitar ou complicar a vida ao cidadão, está bastante presente o vício pouco saudável de condicionar o andamento de um processo ao pagamento de um suborno. E como em qualquer capital, também há assaltos. É evidente que existem excepções a este “pântano”, seria absurdo pensar o contrário. São pessoas com sede de aprender e de evoluir, que agarram as oportunidades que lhes são dadas. Ambicionam um país melhor e são os primeiros a criticar os defeitos do povo e dos políticos que têm. Reconhecê-los e aproveitá-los não é apenas inteligente, mas uma obrigação.

Para desanuviar, quem se der ao trabalho de ultrapassar a cintura da “Luanda para estrangeiro ver” encontrará uma realidade com proporções opostas. Sem correrias, sem atropelos, com muito menos cobiça pelo bem do próximo, com muito menos lixo, em comunhão com a natureza. Como em qualquer vila ou aldeia do interior de Portugal. Ao longo dos 3 anos de estadia prevista em Angola, pretendemos aproveitar as oportunidades que surgirem para conhecer um pouco mais além. Para dois dos fins-de-semana prolongados de 2009, já estão dois destinos na lista: conhecer pessoalmente o Dondo que o Afonso nos mostrou na sua visita, e visitar o meu primo no Lobito.

Gerir as chatices e os momentos de depressão exige um estômago elástico, diplomacia, jogo de cintura, capacidade de sacríficio. E humor, sempre que possível. Quando chegámos, não sabíamos se os teríamos em doses suficientes, mas até ao momento não nos arrependemos de termos arriscado. Mesmo os aspectos mais desagradáveis desta fase das nossas vidas vão servir – têm necessariamente de servir – para o nosso enriquecimento pessoal, nem que seja para valorizarmos um pouco mais o que temos na nossa terra natal, e relativizarmos a importância das contrariedades.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Fora de Luanda II: Muxima


A passagem pela Cabala, além de servir para "desenjoar" de Luanda, foi também um ensaio para um passeio mais longo, até à Muxima.

É inevitável fazermos comparações com outros cenários que já tinhamos visto em Angola e com os que se conhecem de Portugal. Os embondeiros são os eternos companheiros de caminho ao longo de cento e poucos quilómetros, mais de metade percorridos em alcatrão. Alguns serão mais majestosos, mas mentiria se dissesse que a paisagem é diversificada. O país é grande e nós (ainda) estamos mal habituados...


Ao chegar ao destino, somos surpreendidos por uma característica herdada dos tempos coloniais: a fé na religião católica. Não a "fé comercial" de Fátima, com lojas a vender santos e velas a cada esquina, mas a fé pura, que busca a paz de espírito e que só por isso já merece a nossa admiração. A igreja torna-se pequena para acolher todos os que querem assistir à missa, mas pequenos grupos de amigos nas imediações formam rodas dando as mãos, e rezam em coro com os que conseguiram um lugar dentro de portas.



A paz das tardes de domingo não é exclusiva de quem é crente. A sombra da igreja na margem esquerda do Kwanza junta todas as famílias e amigos. Dois deles trazem um tambor e capim, ao qual ateiam fogo. Na nossa ignorância, perguntamos porquê, e logo nos explicam que estão a afiná-lo. Pedimos autorização para os fotografar, o que até os satisfaz. Ao contrário do que aconteceria em Luanda, não nos cobram pela fotografia, apenas pedem para a ver no ecrã.



Completamos uma volta à pequena igreja. As crianças mais pequenas usam as escadas da porta principal como escorrega. Deliram quando percebem que são o centro das atenções das máquinas fotográficas dos visitantes.


A Muxima divide-se entre esta zona de lazer (que abrange o forte, a praça e a igreja deixados pelos portugueses), o pequeno empreendimento turístico (com pré-fabricados de telhado azul), e a zona residencial. Esta reserva mais uma surpresa: a disposição das casas, com espaços razoáveis entre si, e organizadas... em traçado ortogonal! Já para não falar no facto de não serem feitas daqueles tijolos cinzentos completamente anónimos, que inundam os musseques da capital.



Mas as surpresas da Muxima só acabaram uns metros mais à frente, onde um grupo de crianças brincava com os seus carros, feitos com imaginação e... latas de salsicha. Três jipes (dois Toyotas, naturalmente, pois são os mais desejados em Angola) e um camião Unimog. Mas este, dizem-nos, é da polícia e não do exército. De exército deve o povo estar cansado, calculamos nós.