quinta-feira, 30 de outubro de 2008

A primeira vez


No domingo passado fomos fazer um piquenique perto de Cabala, na margem do Kwanza. Saindo de Luanda já se pode andar na rua sem que nos tentem vender alguma coisa, e até nos aventuramos a andar de máquina fotográfica fora do carro.

Enquanto a ponte não está pronta, uma barcaça subsidiada pelo Estado assegura a travessia de viaturas (até 3 de cada vez). A ideia de usar aquele meio de transporte oscila entre a normalidade de uma espécie de ferry em ponto pequeno, e a novidade de estar em África e avançar o jipe pela rampa até uma estrutura improvisada para atravessar um rio onde "diz que" há jacarés. Um rapaz que me viu à espera quase me pediu desculpa pela solução arcaica:

- Em Angola é assim...

Confesso que fiquei atrapalhado com a quase vergonha dele. E nem se justificava; se a barcaça cumpre a função, não podíamos exigir mais nada.

- Hã?... Nã, está óptimo!

A travessia é curta, por isso não perdi um segundo e desatei a fotografar a vista para montante e jusante. Senti-me observado por um dos funcionários e por uma menina de 10 anos. Pedi autorização para os fotografar também. Era tudo o que ele queria naquele momento... Fez a sua pose, e segundos depois pediu dinheiro. Tudo bem, a travessia era de borla mas já tinha a ideia de dar qualquer coisa. Achou pouco os 100 Kz que a Paula lhe deu, quis 1000, e ela riu-se na cara dele. Quando o Afonso lhe lembrou que a travessia é paga pelo Estado, o homem achou melhor aceitar antes que mudássemos de ideias e ele acabasse de mãos vazias.

Na margem oposta a Cabala há um mangueiral com umas sombras convidativas (e também uma cobrazita de um metro e picos de comprido, mas esta assustou-se com a nossa chegada e fugiu com estardalhaço por entre as folhas secas). De marmita na mão, procurámos um espaço para nos instalarmos perante o espanto dos locais. Um mais velho, ao ver 3 brancos a comer sandes no meio do povo, olhou fixamente para nós, com um ar entre o pasmado e o assombrado, e a trocar os passos. O que estariam aqueles 3 a fazer ali, em vez de estarem com os outros ricos?

Ter um tom de pele mais deslavado ou guiar um carro grande em Angola é equivalente a ter USD pintado na testa. As zungueiras querem-nos vender fruta e legumes - pacífico, é melhor do que a do Jumbo e mais barata do que a da Casa dos Frescos. Os controladores de Luanda querem dinheiro para tomarem conta do carro - deixem-me rir. Os polícias estão numa posição privilegiada, porque o serviço que nos prestam não é passível de recusa. Estou a escrever isto e a imaginar um diálogo:

Polícia: - O Senhor cometeu uma infracção e vou ter de o multar.
Condutor: - Não é preciso, obrigado. Depois, depois.

Não foi bem assim que a coisa se passou horas depois, no centro da capital, a menos de 500 metros de casa. Apesar de ainda ser dia, tive a triste ideia de ligar os médios na viagem de regresso, hábito que adquiri há vários anos, não para ver mas para ser visto. Ora, uma coisa é sobressair na estrada pelos outros ocupantes da via, outra é sobressair nas ruas da cidade super-vigiadas pela polícia de trânsito. Ainda por cima, tinha encostado um quarteirão antes para fotografar uma esquina de um edifício que já andava a namorar há semanas. Só faltou cobrir-me de pólen e ir ter com a colmeia.

- Boa tarde. Porque é que o senhor vinha de luzes acesas?
- Ah, para os outros condutores me verem melhor.
- O senhor não sabe que é proibido circular de luzes acesas durante o dia? Vou ter de o multar.

Ora, até então desconhecia que o Código da Estrada de Angola é o mesmo desde 1954. Assumi que houvesse mesmo uma regra estúpida que proibisse o uso de médios durante o dia. E disse-lhe qualquer coisa como «o senhor é que sabe», enquanto lhe passava o passaporte com o VRN para a mão.

E não é que o gajo não se assustou? Nem VRN, nem matrícula verde, nem a colega a dizer-lhe que não valia a pena a multa, bastava só alertar o condutor. Nem quando o Afonso insistiu para ele escrever o nº de agente na multa e a colega lhe segredou ao ouvido que estava feito connosco.

Não me considero acima da lei, mas que diabo, não há nada no Código da Estrada de nenhum dos países que proiba ter os médios acesos de dia. Chegámos a casa e decidi não pensar mais no assunto. O Afonso reparou que a multa não tinha o valor preenchido e decidiu ir entalar o agente. E aí a conversa mudou: a infracção não era circular de luzes acesas, porque isso não é proibido; a tal infracção ao artigo 30º, número 2, alínea a), era que eu supostamente vinha de máximos, a encadear os outros condutores. Ora pôrra, se é para me multarem, ao menos façam-no por alguma coisa que eu tenha feito realmente!

Já paguei a multa: 5247 Kz, cerca de 50€. Estou a borrifar-me para o valor, não é isso que está em causa. O que me lixa é que o gajo acaba por levar a melhor injustamente (não levou gasosa, mas leva a comissão da multa, que em Portugal é mito mas em Angola é real). Os senhores da GNR-BT conseguem ser mais honestos, mesmo quando nos picam com um BMW ou com A4 descaracterizado na auto-estrada, ou se escondem atrás de uma árvore numa recta no Alentejo. Ao menos com esses só é multado quem "quer".

Agora só tenho de esperar que os documentos do carro cheguem à esquadra para que o motorista da empresa, rato velho, nascido em Lamego mas com 47 anos de Luanda, os recupere. Vamos ver se a novela acaba aqui.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Arte III... NOT!


Uma das características dos gangs da Amadora, de Massamá, do Cacém, do Bronx ou do raio que os parta ou da pata que os pôs, é borrarem as ruas com os seus tags, que acham muito mais cool do que os dos gangs rivais. A ideia é fazerem aquilo que os canídeos fazem com a sua tinta de urina e a sua lata de spray incorporada: demarcação de território. E não pretendo ofender os nossos melhores amigos.

Confesso que os tags me irritam muito menos em Luanda do que em Lisboa. Primeiro, existe uma certa inocência nas assinaturas, que em vez de um gatafunho sofisticadamente indecifrável, é um nome fácil de entender. Acabo por me conseguir identificar um pouco com estes, porque eu também nunca consegui inventar uma rubrica tipo mosca-esmagada.



O outro aspecto, muito mais importante, é o que se pode e o que não se pode pintar. Em Portugal, qualquer edifício de habitação, grande parte dos edifícios de empresas (estou a lembrar-me de bancos na baixa) ou até mesmo alguns edifícios históricos (como as Portas de Benfica), são candidatos a levar um borrão na fachada, porque não estão vigiados durante a noite. Em Angola... que nem lhes passe pela menina dos olhos! Até o nosso pequeno prédio tem seguranças 24 horas por dia, armados com AK47, quanto mais uma agência de um banco ou um edifício público. Pintam nas paredes "sem dono", e já gozam. Correndo o risco de ser mal interpretado, sou obrigado a saudar as “democracias musculadas”; o respeitinho é logo outro! Aliás, é sintomático que, enquanto em Portugal se passou um Verão quente de carjaquim e assaltos a bombas de gasolina e outros estabelecimentos comerciais, em Luanda vemos lojas a abrirem sem grades nas montras, como era costume noutras eras. Inversão de tendências?



E agora, para algo completamente inesperado, relacionado com escritos nos muros...



Pois, não sei o que vos diga. Tanta gente a morrer porque a indústria farmacêutica não consegue (ou não – cof-cof, aham – quer conseguir encontrar) a cura para a SIDA, e afinal a "solução" está num muro no Futungo de Belas.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Tirar a barriga de misérias


Quando criei este blog, o objectivo foi escrever sobre Angola, contar curiosidades de cá. Bem, este deverá ser dos posts que menos têm a ver com este país. Vou chamar-lhe pomposamente uma descrição pelo inverso.

«Atão?!», perguntam vocês, pelo menos os que não falam correctamente... :P

“Atão”, falemos de tudo o que é de díficil acesso em Angola e que, por isso, ganha uma importância especial em Portugal.

À semelhança do que tinha acontecido com as gerentes da empresa (e acredito que aconteça o mesmo com grande parte dos portugueses no estrangeiro), as férias em Portugal não foram abundantes em descanso. A preferência pela assistência médica lusa, juntamente com a catadupa de assuntos que foi necessário resolver, obrigou a uma certa correria.

No nosso caso, parte da correria foi em cenário de passeio, porque tinhamos a necessidade de descansar as vistas. Como sabem, para nós a melhor maneira de encarar Luanda é levando o dia-a-dia na brincadeira, para não repararmos que 80% da população mora em bairros sem condições, por onde serpenteia uma água verde, castanha, ou até cinzenta, que inunda as redondezas de um constante cheiro a fossa. Mas sair daqui para contemplar os dormitórios da Área Metropolitana de Lisboa também não seria grande programa. Daí, termos tido a ideia de limpar o pó dos olhos com o verde e o azul de um arquipélago como os Açores. Claro que o tempo não chegou para ver tudo o que queriamos e, no fim, perguntávamo-nos como é que, depois de passearmos por Angra do Heroísmo ou de vermos a Lagoa de Santiago, iamos conseguir voltar a encarar o Bairro do Prenda.

Da minha parte, bastou ter perdido quase duas horas em sentidos proibídos na zona do Saldanha para relativizar as contrariedades. E, quando ambos levámos uma tareia das ventanias de fim de tarde (a Paula, com cartões na mão, ia levantando voo), lembrámo-nos que talvez seja mais fácil passar estes dois meses e meio até ao regresso se formos acompanhando o estado do tempo aí no rectângulo. Cada vez que virmos aí um dia cinzento, chuvoso e frio, vamos agradecer os trinta e tal graus que o sol nos reserva para os próximos tempos no hemisfério sul. Ou então não.

Ora, para fazer jus ao título deste post, não podia deixar de referir as várias vezes em que cometemos o pecado da gula. Aqui o menino tinha perdido 1 quilo por mês, e impunha-se a implementação do “processo de engorda do porco”. Se até a popular moela caseira foi apreciada como um manjar, que dizer da sofisticação de pastéis de massa tenra recheados com queijo chévre e cobertos de geleia e nozes; ou de sushi, caranguejo, gengibre e sake? Ou, nos Açores, de espadarte assado na pedra ou bife de tubarão? Para os próximos meses, fica a promessa de dar a devida atenção às refeições. Pelo menos, quais navegadores dos Descobrimentos, já trouxémos na bagagem um valente carregamento de especiarias, com o alto patrocínio do Supermercado Mirapreço do nosso amigo João.



Se houvesse alguma dúvida que a avalancha de trabalho me tinha anestesiado parcialmente das saudades que tinha, bastou chegar a casa para ter a certeza. A sensação de, em 4 meses e meio, termo-nos esquecido do lugar de alguns utensílios de cozinha, foi estranha. Tal como, ao aproximar-se o fim das férias, começar a pensar nas bugigangas que vão no contentor para rechear a casa que, relembro, será a nossa durante 3 anos. Não deixa de ser curioso que os símbolos da nossa confiança na estabilidade deste “projecto de vida” sejam uma máquina de café e um aspirador (varrer um 1º andar de 150 m2 na empoeirada cidade de Luanda custa “um bocadinho” mais que aspirar um 3º andar de 70 m2 nos arredores de Lx). Mas não se enganem: no fim desses 3 anos eles ficam cá, nós não.